Vivos roubando Vivos, o caso dos ladrões de sepultura

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Gustavo Miquelin Fernandes

O homem que não luta pelos seus direitos não merece vive, Rui Barbosa. Em cemitérios, para além de itens de subido valor, é possível achar uma variedade de ornamentos, lápides e até impressionantes obras de arte. Faz lembrar um conto muito conhecido de Lima Barreto, intitulado “o Cemitério”, onde a personagem faz uma pequena excursão num cemitério, divagando sobre a finitude humana, registrando a intrigante paisagem: “Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas – coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava.(…)” –

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Quanto aos furtos recentemente ocorridos em nossa cidade, não há, creio, se falar em “desrespeito aos mortos”. O argumento é materialista demais. O desrespeito é com os vivos mesmo; com o patrimônio privado, com o serviço público e com a honra dos familiares.

Os mortos devem ficar de fora já que eles não têm personalidade jurídica. Em que pese esta primeira pontuação, o crime existe, há falha no serviço público e os delitos em série indicam falta de planejamento. Foram centenas de itens furtados, dissabores aos familiares, a imagem do Município bastante arranhada.

O acontecimento reverberou fortemente, inclusive ganhando duras críticas do jornalista Reinaldo Azevedo, com quem tive a oportunidade de conversar, por uma vez, na casa do senhor Paulo Zago. Li também algumas manifestações a respeito do incidente. Para se dar um passo no entendimento da resolução do problema, é preciso compreender um pouco a estrutura do Estado. Ocorreram delitos no interior de um território explorado para a prestação de serviços cemiteriais e isto demanda uma solução.

Desta forma, as responsabilidades são bem separadas pela Constituição Federal: a Polícia Civil investiga os furtos e danos ou outros crimes já cometidos, visando a formar culpa perante o Poder Judiciário (Art. 144, § 4º, da Constituição Federal); à Polícia Militar cabe o patrulhamento ostensivo e a possível prevenção de ocorrências criminais (§ 5º); e, por último, a Prefeitura Municipal, a quem compete prestar um serviço público razoavelmente eficiente (artigo 37, caput, da Constituição Federal).

A Lei Orgânica Municipal, em seu artigo 6º, XXVIII dispõe que ao Município compete prover tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem-estar de sua população, cabendo-lhe, privativamente, dispor sobre os serviços funerários e de cemitérios. Preservar bem as edificações públicas; realizar o muramento das instalações, de modo que isolem totalmente a área externa da interna e manter vigilância em bens públicos é um desdobramento natural da prestação adequada do serviço público.

Tive conhecimento que o senhor Prefeito Municipal despachou pessoalmente com o Governador do Estado um ofício solicitando providências, o que me pareceu um pouco exagerado, tratando-se, à evidência, dum problema de ordem local. Realmente, indigna saber que tais furtos ocorreram seguidamente, estando as autoridades municipais cientes, ainda mais pelo modus operandi dos crimes praticados em cidades vizinhas, e mais ou menos com as mesmas características. Ainda entenda que, na prática, a atividade administrativa possa falhar, a matriz normativa para a resolução do problema poderia ser o uso da Guarda Civil Municipal.

O próprio Estatuto Geral das Guardas Municipais, em seu artigo 5º prevê: Art. 5o São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais: I – zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município; II – prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais; III – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais; (…) – Desconheço o efetivo da guarda, a escala realizada, bem como o planejamento, mas, sabendo de antemão do modo de operação dos ladrões de túmulos, que eram diuturnos e seguidos, não seria o caso de planejar um força-tarefa, usando a própria Guarda Municipal? Desta forma, no que tange à Prefeitura, cabe um dever razoável de cuidado e mínima, pelo menos, qualidade de serviço público. Quando o crime atinge número considerável de pessoas, tem potencial lesivo muito maior e abarca a lesão não só o patrimônio, como à honra dos familiares.

Pode que alguns não tenham sido vítimas destes crimes, mas um ato criminoso de grande abrangência agride toda a sociedade. Um forte tapa na cara de todo cidadão doiscorreguense. Finalizo com uma frase típica das instalações sepulcrais: “Hodie mihi, cras tibi” – algo como “hoje para mim, amanhã para ti”.

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