Diploma: Estranha Obsessão

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“O diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber. Isto permite também que os não possuidores de diploma acreditem não ter direito de saber ou não são capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele não lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não tem diploma dão-lhes um sentido pleno. Acho que o diploma foi feito precisamente para os que não tem” – Michel Foucault

 

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Há poucas semanas, em publicação neste jornal, fui questionado por um leitor da cidade sobre posicionamento que emiti em artigo, alegando o mesmo que tinha curso superior, era “formado” em alguma coisa, apontando o dedo acusador ao Jornal, acusando-lhe imparcial; outro leitor disse que o periódico teria jogado anos de história no lixo por ter endossado minha publicação. Foi em vão eu explicar aos jovens que me deram “carteiradas universitárias” que o texto não representava a opinião da empresa, não sendo um editorial em sentido estrito.

Vivemos hoje certo frenesi com relação às diplomações, titulações, ensino superior, etc. A cultura está excêntrica e superficial. Tudo em escala industrial e massificada. Os prestadores de serviços educacionais já se adaptaram aos reclamos desse novo estamento: o “dos estudados” ou “muito estudados” que, na verdade, não passam de palpiteiros diplomados que se acham especialistas em tudo.

A presente crítica não é ao sistema de avaliação que o mercado realiza por meio da aferição da quantidade de nível escolar, e sim à supervalorização, no nível, sobretudo, cultural, que se faz disso. A verdadeira fetichização do diploma.

De um lado, uma busca incessante e paranoica por esse produto, que logo será vendido à semelhança de mercadorias comuns, em mercearias e lojas de secos e molhados, e de outro, sua oferta também bastante banalizada, oferecendo aos interessados o conhecimento fast food.

Reconheço, sim, que franqueia de modo legítimo o acesso a postos de trabalho, a concursos públicos, a majorações salariais e promoções empregatícias e, outrossim, uma melhora na produtividade geral em termos de economia de escala, mas jamais qualquer tipo de experimentação educacional formal e burocrática garantirá a formação plena do que se pretende ser um estudante sério. Valorizamos não o know-how, nem o conhecimento genuíno, mas o documento formal que atesta subidos títulos intelectuais aos indivíduos.

Sem dúvidas, o diploma é uma circunstância indiciária de algum preparo técnico, mas como dito, bastante relativa. A verdadeira instrução em qualquer área se faz com a boa literatura, com a pesquisa sincera em torno de temas importantes, a troca de experiências entre os profissionais – tudo isso aperfeiçoado na lida profissional.

Jamais temos que respeitar alguém por ser Ph.D. (philosophiae doctor) em qualquer território do Saber, mas sim porque ele tem o domínio respeitável do estado de coisas desta mesma área.

Ostentar simploriamente diplomas e títulos é coisa de caipira e não passa disso.

Sou a favor, sim, da universalização do ensino superior, desde que sua qualidade não seja afetada, nem diluída. De nada adianta otimizar a quantidade do estudantado e menosprezar a variável mais importante, a qualidade. Não quero defender a negativa do acesso a quem quer que seja – a crítica não é esta e isto não seria justo. Quero apenas chamar atenção para não depositarmos a fonte de todo conhecimento em institutos burocratizados, quer públicos, quer privados. A suprema realização existencial depositada em um curso superior qualquer me parece um pouco infantil, e muito mais é quando materializada em um simples diploma ou título universitário. Acredito que o fato da pessoa – e aqui não raciocínio com a lógica do mercado, que não obstante, respeito, já que adota como seu livre critério – não ter uma trajetória formal acadêmica não é nenhuma circunstância alarmante, nem que alije dela o reconhecimento de seus pares ou sua diminuição como pessoa ou cidadão.

Não tem curso superior? Estude por si próprio. Monte um grupo pequeno. Existe bom material disponível. Creio que em breve tempo estará bem preparado, seguindo uma metodologia adequada. Não se prepare para ser um generalista vulgar, nem uma pessoa com “cultura de almanaque”, mas um estudante sincero, ciente de sua ignorância, querendo aprender alguma coisa com a pesquisa séria, e que redunde, ao fim, em sua realização espiritual.

Immanuel Kant usaria sua conhecida expressão sapere aude: ousar saber, se aventurar a saber. Isto é importantíssimo. No Brasil temos uma elite-classe-média estudada e terrivelmente ignorante, desinformada pela grande mídia. Os intelectuais são todos porta-vozes de Governos e partidos, e temos uma classe política totalmente analfabeta em qualquer área que se analise. O caos em termos de educação reina por aqui. Será que neste contexto, esta busca incessante por titulações e diplomas pode redundar em algo positivo? Creio que não.

Como dito, a economia de mercado usa como critério a realização de cursos, graduações, etc. Não acho correto um boicote a esse sistema, que funciona bem em termos estritamente econômicos, mas que não põe a salvo qualquer tipo de ignorância espiritual dos indivíduos. Esta corrida pelo conhecimento é o mais puro provincianismo, a “vontade de ser elite” que talvez tenha sido herdada dos colonizadores.  Reconheço, entretanto, que há certos cursos tecnológicos que demandam certas estruturas que apenas podem ser encontrados em institutos específicos e bem estruturados. Mas, trato nesse texto, como é obvio, da parte de Ciências Humanas em especial.

A verdade é que devemos complementar nossa educação por toda a vida, independente de manuais, orientações de funcionários, exames, provas, monografias, e demais itens da burocracia educacional. Isso demanda estudo contínuo, por longo prazo, ampla reflexão, reconhecimento solene do estado de ignorância, pesquisa séria e, como dito, muito tempo.

Nos EUA, nos níveis mais elementares de educação está bem presente a cultura do homeschooling que, sem dúvidas, é uma prática bastante eficiente e que ainda não bateu em terras brasileiras.

Conheço pessoas que deixaram a vaidade de lado, o instinto grupal e foram estudar e aprender de verdade. Não obtiveram diploma, mas ganharam bastante conhecimento. Reitero ainda que titulações e outros tipos de gradações podem garantir eficientemente ascensão profissional, mas não têm a exclusividade na formação, nem garantem a completude intelectual e técnica que pode ser alcançada por outras vias.

Que não haja ilusões. Ser um Sócrates insatisfeito ou um porco satisfeito? – diria John Stuart Mill.

A arrogância dos diplomados é a coisa mais imbecil que existe. Os “cafonas poliglotas”, geralmente intoxicados pela ideologia dominante, pelo marxismo cultural arrotam uma cultura e uma autoridade que efetivamente não possuem.  E há o fator cultura nisso: desde pouca idade, somos acostumados com informações do tipo “sem estudo não há futuro”.

Pode ser verdade isso, desde que o raciocino seja estritamente profissional ou econômico e não penetre na esfera da altura cultura e da realização espiritual. É uma meia-verdade que deve ser acolhida cum grano salis, com algumas reservas.

Não que eu faça apologia da ignorância. Os indivíduos devem, de toda forma legítima, desde a realização de graduações, a busca de títulos, etc., buscar o progresso material e financeiro. Não acho nada elogioso a cultura da ignorância. Veja o caso de um Presidente da República semianalfabeto em passado recente. Nada mais vergonhoso que aquilo. E dizem: isto era assim porque se tratava de um homem simples, do povo, que chegou ao Poder. Mas se o homem simples conseguiu a façanha de chegar ao Poder, por que ao menos não se alfabetizou dignamente? Se pode o mais, pode o menos. Contraditório? Sim: é assim que agem nossos estudados e intelectuais. Sempre com base em raciocínios grupais, de classe e comprometidos com ideologias baratas.

Como já dito, não faço defesa moral da ignorância, embora me ache bastante ignorante. Advogo apenas – sem desmerecer o academicismo, que tem sua função – o perigo de fetichizarmos ou dar vida própria a certas coisas, em essência, sem muito valor, em detrimento de outras mais urgentes e importantes como a realização espiritual, que é o encontro caloroso entre a alma inquieta e o conhecimento verdadeiro ou, como diria Platão, a saída da caverna.

Gustavo Miquelin Fernandes

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