“A Escolha de Sofia Brasileira” ou “Empilhando Cadáveres” 

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É comum a afirmação de que num momento de guerra, a primeira coisa a perder-se é a razão. Estamos todos dentro de uma espiral de desespero e obscuridade, sem saber ao certo quais serão os próximos passos no enfrentamento desta epidemia, alimentada por excesso de informações, medo do desconhecido, um sistema de Saúde com deficiências estruturais importantes e agitações políticas totalmente inoportunas.

O medo é real e justificável. Começamos uma escalada duríssima contra um agente patógeno, invisível, letal, novo (e por isso, não contamos com uma “manada imunitária”, quer dizer, nosso povo não tem imunidade suficiente para enfraquecê-lo), não dispomos de remédios, nem há disponibilização de vacinas no curto-prazo e, como dito, existem problemas graves no sistema público de saúde.

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O que espanca a nós, brasileiros, é o pavor de duas ondas: o problema em saúde em si, que já fez o obituário nacional alavancar-se; e, o que vem depois: uma crise social, econômica, financeira, que porá à margem muitos milhões de brasileiros e pressionará os cofres do Estado, levando uma multidão à cata de benefícios sociais, vouchers e prestações positivas do Poder Público.

O confronto ético até poucos dias reinantes no cenário nacional e que, agora parece um pouco arrefecido, é o combate ideológico entre a ética utilitarista versus a deontológica. O confronto filosófico se fez presente em discursos de personalidade importantes, políticos, empresários, jornalistas; de um lado, os defensores da quarentena total com a fechadura de todas as unidades de produção, especialmente do setor de serviços em busca da interrupção das infecções virais; de outro, os que advogavam um isolamento parcial. Sendo mais claro: ‘o Brasil não pode parar’, as pessoas respiratório-assintomáticas devem trabalhar e o grupo de risco deve se isolar em quarentena.

Eis a escolha de Sofia brasileira, ressalte-se: por ora.

A escolha de Sofia da Itália reside na chamada Medicina de Catástrofe, ou seja, quais doentes poderão fazer uso de respiradores para enfrentar a síndrome respiratória aguda grave provocada pelo coronavírus. Assim, recai nos profissionais de saúde a decisão sobre quem vai viver e quem vai morrer.

O experimento italiano não bateu ainda em mentes brasileiras, em especial na cabeça oca do Presidente da República e de seus filhos malucos. A verdade estraçalha devaneios pessoais, e aspirações, ainda que de boa-fé, de pôr um país em ordem, depois de tantos anos de destruição e roubalheira. Mas, a verdade é sempre a verdade e ela, às vezes, não agrada. Entre aceitar os fatos e se basear no principal conselheiro de Saúde de Donald Trump que estima 200 mil mortes nos EUA, ou ouvir o Roberto Justus, a Regina Duarte e Olavo de Carvalho, os adeptos de um bolsonarismo capial desmerecem o paradigma científico e ficam com os segundos.  Nossos terraplanistas sanitários querem replicar a Milão devastada pelo vírus, em nome de uma audácia pessoal e uma aventura que implica riscos graves para a sociedade, desconstruindo um trabalho de educação social que vinha sendo construído por técnicos sérios e epidemiologistas. Flertam, o negadores de verdades, com o “wishful thinking”, que em psicologia social significa acolher desejos pessoais como a própria realidade, ignorando o mundo à volta e tomando providências baseando-se em crenças pessoais, desmerecendo todo o conjunto de fatos.

Enfim, a relação entre preservação de saúde e empregos, que citei, é uma falsa dicotomia, que por questões de espaço não posso dissertar. A questão parece bem esclarecida para aqueles que ostentam um mínimo de equilíbrio mental neste torvelinho de acontecimentos e guardam, neste momento pesadíssimo, a ideologia num cantinho da casa.

Não é errado dizer que, ao depois da primeira onda que já está machucando muitos brasileiros, enfrentaremos um grandíssimo problema econômico-financeiro. Mas o inimigo não se combate de uma vez. Primeiro, cuida-se de deixaram as pessoas respirarem, de terem acessos a leitos de UTIs, de salvaguardar nossos idosos e grupos mais frágeis. Depois, equacionaremos as demissões em massa, a fome, a destruição de empresas.

A saúde como direito fundamental deve, neste instante da História, ser privilegiada em contraste com outros direitos. Não se relativiza a primeira, em nome de nada, de nenhum outro direito, e muito menos de discursos confusos em cadeia nacional de televisão. Direito Constitucional puro!

Encerro com uma indagação bem oportuna do Ministro da Saúde: “Estamos prontos para vermos caminhões do Exército transportando mortos pelas ruas?”.

Gustavo Miquelin Fernandes

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