Uma Reflexão de Final de Ano

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Gustavo Miquelin Fernandes  – @gustavomiquelinfernandes

Uma ponderação é merecida nos estertores deste ano. Estamos já algum tempo vivendo uma crise pobreza de alcance mundial; a Geografia Política se movimentando e reposicionando-se com vigor, como de tempos e tempos, sofrendo com o que chamamos de “ciclotimia geopolítica”, alterando profundamente o xadrez político universal.  Houve a tomada do poder pelo Taleban no Afeganistão, a China ganha diferente e fortalecido status político, a Alemanha encerra um longo ciclo, os EUA se veem como nunca antes criticados. As preocupações centrais passam ser o clima (mais que nunca), a “economia verde”, as empresas espaciais, a privacidade na internet, a volta das discussões sobre regulamentação da mídia e a censura.

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Porém, a pauta que nunca sai de cena é a “paz mundial”.

Contextualizando o tema, na “Segunda Conferência de Paz da Haia de 1907”, o jurista brasileiro Rui Barbosa já defendia com ardor a igualdade jurídica das Nações e a prevalência do Direito sobre a força bruta.  O século XX, entretanto, foi de choro, sangue, bombas e regimes autoritários e altamente destrutivos.

O objeto do tema que tratamos aqui tem como objeto cartas trocadas entre Freud e Einstein, dois monstros intelectuais – especificamente mensagens trocadas no ano de 1932, mês de julho. Einstein, explico de forma simplista, questiona primeiramente o pai da Psicanálise se haveria como livrar a humanidade da ameaça de guerra.

Bom ressaltar que a conversa foi anteriormente à segunda guerra mundial, numa provocação de Einstein assacada contra S. Freud, em tentativa de resolver o problema da paz mundial sob o enfoque das suas recentes descobertas, apresentando, sendo possível, novos e frutíferos métodos de ação (a primeira guerra deixou em media  10 milhões de mortos, além de civis feridos e também abatidos).

Einstein, pela leitura da carta, confessava uma certa “ignorância” em compreender a vida instintiva do homem com vistas a sugerir métodos educacionais para que se evitasse hecatombes globais. Ele não conhecia profundamente a “sombra”, ou os “demônios interiores” das pessoas.

O famoso físico ressaltava que era necessário fazer algo fora dos objetivos da Política, sugerindo expressamente um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surgisse entre os povos.

Porém, sua ideia veio acompanhada de visível incredulidade, dados fatores especialmente psicológicos, eis que tal organismo ou tribunal seria composto de pessoas, e, portanto, seres humanos falhos, ilustrando com o didático e paradoxal exemplo de grupos de fabricação e venda de armas, que consideravam uma oportunidade de expandir seus negócios e ampliar a sua autoridade pessoal.

E, apressadamente  ou não, conclui que, porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição, e que em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emergindo apenas em circunstâncias anormais; contudo seria relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva (logo mais, curiosamente, um psiquiatra chamado Viktor Frankl iria dizer que cada época convive com sua própria neurose coletiva).

E provoca Freud: “Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? “

Ele tinha consciência de que as destruições em massa não brotavam das massas populares, mas sim dos “intelectuais de gabinete” ou da chamada intelligentzia – afastada que é dos problemas reais e comuns do mundo, e com todo o tempo e dinheiro para maquinar as piores barbaridades – que inclusive abaterem, efetivamente, a humanidade, logo mais.

De Viena, Freud responde ao físico alemão, em setembro de 1932, num profundíssimo arrazoado.

Delimita o tema de forma invulgar com este trecho, digno de citação:

“O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua violência’? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas argumentações o exige. “

Num giro antropológico, explica que nos primórdios venciam-se demandas com força muscular, depois com o uso de instrumentos, o vencedor era aquele que tinha armas superiores. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta e a intelligentsia, com tempo, dinheiro e poder, ficou livre para atuar.

A morte seria então desejável por duas vantagens, e explica o porquê: o vencido não podia restabelecer sua oposição, e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo. Ademais disso, arremata o psicólogo: matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual.

Freud ensina que a conquista da paz é um processo coletivo, e não uma demanda apenas de atores individuais: ‘L’ union fait la force.’

“A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado. “

Freud teve uma sacada intelectual intuitiva: a violência deve ser combatida por processos consensuais e coletivos, devendo ser substituída pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. Há agravantes no processo, segundo o mesmo e cito suas colocações, que são feitas por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam ao povo — isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. Em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sistema de leis. Assim, a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade.

Portanto, em sua visão (ressalte-se), guerras somente serão evitadas, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder.

Eles não tinham o domínio e nem seria exigível que soubessem que o Direito Internacional tem uma força mais simbólica, sem efetividade máxima ou mesmo uma coatividade universal, sendo imprescindível a consensualidadade das partes; mas as correspondências trocadas são interessantes. Um físico incomodado de Q.I. alto indagando um  psicólogo cultíssimo sobre formas de se frear convulsões bélicas.

Cito, então, da leitura da carta e com a devida licença, as formulações de Dr. Freud: os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium , ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos.

Explicou ainda que o professor G. C. Lichtenberg, que ensinava Física em Göttingen inventou a chamada de ‘bússola de motivos’, pois escreveu: ‘Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo, “pão — pão — fama” ou “fama — fama — pão”.’ De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados.

Afirma, por final, que de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do Homem; pode-se, contudo, tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.

Contudo, o avanço maduro de característica psicológicas da civilização, duas ganham notável importância: o fortalecimento do intelecto, governando a vida instintual e a internalização dos impulsos agressivos.

Por fim, segundo a leitura, dois fatores que poderiam contribuir com a paz mundial: a atitude cultural e o medo das consequências de uma guerra futura venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. O que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.

E o que se pode concluir, numa “sociedade de desafetos” é que o homem causa a sua própria infelicidade, sendo vítima de suas próprias ações, mas é o mesmo que pode freá-las, sempre num esforço coletivo.

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